Brumadinho
Candidatos terão de vencer a descrença e a tragédia
Devastada por uma tragédia que a colocou como cenário do maior acidente de barragem com vítimas fatais no Brasil, e entre os 8 maiores desastres ambientais do mundo, segundo Relatório da Agência de Meio Ambiente da ONU, Brumadinho impõe dois desafios aos seis candidatos a prefeito, nas eleições do próximo dia 15 de novembro.
O atual prefeito e candidato à reeleição, Nenen da Asa (PV), Breno Carone (MDB), Bruno Johnny (DC), Cláudio Teixeira (PRTB), Professor Márcio Guru (PTB) e Reinaldo Fernandes (PT), terão, primeiro, que convencer a maior parte da população a mudar de ideia sobre a ineficiência de políticos em suas vidas e ir às urnas, votar. Depois, o eleito terá de convencer a responsável pela tragédia, a Vale S.A, segunda maior mineradora do mundo, a mudar a sua relação com as famílias das vítimas e a cidade.
“Situações como a da tragédia em Brumadinho lançam grandes desafios para o Estado e para a sociedade, pois evidenciam a precarização das instituições diante do avanço desmedido das empresas sobre bens naturais e de uso comum.”
A análise é da professora titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Andréa Zhouri, que coordena projetos de pesquisa e extensão sobre políticas de reparação do rompimento, em 2015, da Barragem do Fundão, em Mariana, provocado pela Samarco, empreendimento da Vale em sociedade com uma gigante multinacional da mineração e do petróleo, a anglo-australiana BHP Billiton.
Problemas envolvendo a tragédia se arrastando já há quase dois anos mostram a dimensão e complexidade desses desafios.
Perdas e danos
N o dia 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem na Mina Córrego do Feijão provocou um deslizamento, na velocidade de 80km/h, de quase 12 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério, matando 272 pessoas, 259 delas, funcionárias da Vale. Do total, 11 vitimas não foram encontradas até hoje.
É o caso de Lecilda de Oliveira, 49 anos à época, 30 deles a serviço da Vale, mãe de dois filhos. “Estamos perto do segundo aniversário dela debaixo da lama. É justo fazerem isso com uma das funcionárias mais antigas, que se dedicou àquela empresa até a morte?”, questiona Natália de Oliveria, 48, irmã da vítima. “Poucos meses depois, a Vale, que tem um exército dos melhores advogados do país, forçou um acordo, e as famílias, ainda fragilizadas em todos os sentidos, aceitaram.”
Com o acordo, pais, cônjuges e filhos das vítimas receberam, cada um, R$ 700 mil por danos morais. Irmãos receberam R$ 150 mil, cada. Porém, segundo Natália, foi omitido um seguro de vida que a Vale faz para cada funcionário no valor de 2,6 milhões de dólares (pouco mais de R$ 14 milhões, na cotação de hoje), mas não foram pagos mais do que 2,6 milhões de reais. Às ações judiciais contra isso a Vale reage interpondo recursos que se arrastam na Justiça.
Também controversa, a recusa da Vale em quitar direitos trabalhistas, tais como os 40% do FGTS. “Fica parecendo que a pessoa não morreu em serviço por culpa da empresa, mas abandonou o serviço, virando demissionária”, indigna-se Josiane Melo, 39, presidente da Associação dos Familiares de Vitimas e Atingidos do Rompimento da Barragem Mina Córrego Feijão Brumadinho (Avabrum), que teve uma irmã morta no desastre, a engenheira civil Eliane Melo, 39, que estava grávida de cinco meses, o que aumentou ainda mais a tensão da família na relação com a Vale.
Eliane foi encontrada 69 dias após o rompimento, e a empresa alega que não foi possível comprovar a gravidez. “Com isso, a Vale contabiliza menos vítimas e paga menos indenizações. É irônico isso vir justo de uma empresa que tem como lema e política de gestão ‘A vida em primeiro lugar‘”, destaca Josiane, também funcionária da mineradora, mas afastada pelo INSS desde o desastre.
Os critérios da Vale para contabilidade das vítimas também representam um drama para a dona de casa Arlete Silva, 57, e para seu marido, o aposentado Alberico Silva, 62, pais de Vagner Nascimento, morto aos 39 anos no desastre, deixando esposa e filha de 16 anos. Seis meses após as buscas, somente sua perna direita foi identificada pelo DNA e entregue à família, que se recusa a dar o caso por encerrado.
“Para a Vale, meu Vaguinho é apenas menos um para ela se preocupar, porque já me entregou a perna dele, mas para mim, não, ele continua desaparecido. Eu o coloquei inteiro no mundo, ele saiu inteiro para trabalhar, é inteiro que eu tenho o direito de enterrá-lo. Só quero fazer um sepultamento decente do nosso filho”, desabafa a mãe.
O pai, desde então, todos os dias, às 18h, sai da letargia imposta pela depressão crônica e cumpre um ritual: vai até o portão de casa esperar que o IML apareça para lhe entregar o restante do corpo do filho. Era nesse horário que, durante os 15 anos que trabalhou como operador de motoniveladora na barragem, Vagner chegava à sua casa, contígua à dos pais.
A espera de Alberico deve demorar: ainda existe uma área com 5 milhões de metros cúbicos de rejeitos a ser vistoriada. Com a pandemia da Covid-19, as buscas foram interrompidas em março passado, sendo reiniciadas somente agora.
Nessa questão das reparações devidas pela Vale, à exceção do candidato Bruno Johnny, que não respondeu aos pedidos de entrevista, os candidatos têm proposta convergente: com amparo na Justiça, no MP e nos contratos firmados entre prefeitura e empresa, e em parceria com o governo estadual, exigir indenização integral (material, trabalhista, moral e de saúde) às famílias das vítimas e aos atingidos pelo desastre, bem como reparação integral (financeira e ambiental) ao município.
Descrédito na justiça e na política
O que mais revolta Arlete e Josiane é a certeza de que a tragédia poderia ter sido evitada. Segundo Arlete, seis meses antes do desastre, o filho comentara com ela ter achado estranha a presença de engenheiros da mineradora vistoriando uma possível trinca na barragem. A suspeita de Vagner encontra eco numa declaração de Josiane:
“Em julho de 2018, já havia trinca na barragem. Não foi à toa que, em outubro, do nada, a Vale realizou um simulado de fuga, algo que nunca havia sido feito. Na época, pra gente que trabalhava lá, ficou parecendo apenas um procedimento de segurança, mas quando rompeu, aí a gente entendeu. Tá tudo apontado nas CPIs que já foram feitas. Tinha que ter retirado todo mundo dali, mas não fizeram isso nem avisaram do risco. A Vale escolheu matar por ganância”, afirma.
A indignação se estende à justiça e à política, das quais esperavam atuações mais incisivas na responsabilização da empresa pela tragédia e suas consequências.
“Nesse país, a justiça não respeita as leis, ela respeita o dinheiro”, acusa Arlete, que não sairá de casa para votar. “Perdi a esperança no ser humano”, confessa.
A descrença na política foi confirmada por quatro candidatos a prefeito, bem como por integrantes da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), com atuação constante junto a boa parte dos 57 mil habitantes de Brumadinho.
Estimam que aproximadamente 60% da população acreditam que quem manda na prefeitura é a Vale, então, não esperam mudanças com as eleições, independente de quem seja eleito.
O candidato petebista, Professor Márcio Guru, cita um caso que explica a depreensão popular do poder da empresa na cidade: no início da pandemia, o prefeito decretou paralisação temporária das atividades de empresas terceirizadas da Vale. Dois dias depois, o decreto foi revogado pela justiça estadual.
Sonia Maranho, do MAB, lembra que, à época do desastre, o então Relator Especial das Nações Unidas para Direitos Humanos e Substâncias Tóxicas, Baskut Tuncak, fez um laudo recomendando que o caso fosse investigado “não como acidente, mas como crime”, e não houve mobilização política nesse sentido. “Com isso, a população sente que o poder público pouco interfere em sua defesa. Triste, pois a solução é política”, lamenta outro coordenador do MAB, Joceli Andrioli.
A sensação de abandono político é reforçada pela atuação do governador mineiro, Romeu Zema (NOVO), cuja maior preocupação, diz Andrioli, tem sido com a contrapartida da Vale para o estado.
Opinião compartilhada pelos candidatos Breno Carone e Reinaldo Fernandes, que destacam a atuação de Zema, até então, apenas para garantir que a Vale pagasse os R$ 54 bilhões que deve ao estado para reparação de danos morais e sociais coletivos. Na última quinta-feira, 22, porém, o governador mineiro, em entrevista à Radio Itatiaia, sinalizou aceitar um acordo por um valor menor, para realizar obras em todo o estado. “É preferível receber X agora do que 3X daqui há anos”, afirmou Zema.
Tragédias e doenças
A saúde física e mental da população de Brumadinho está ruim desde o desastre.
Por ser uma cidade pequena, todos tinham algum vínculo (familiar, de amizade, profissional, afetivo) com uma ou mais das vítimas fatais. Assim, todos desenvolveram algum tipo de trauma, variando apenas a gradação deste, donde significativa parcela da população busca algum tipo de tratamento de saúde mental. Os casos mais comuns são depressão, síndrome do pânico e insônia. Os mais graves, desejo ou tentativa efetiva de suicídio (cinco, até agora).
A procura maior por tratamento é na rede pública, via Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), mas atendimentos particulares também são feitos via planos de saúde custeados pela Vale como parte do acordo de reparação às famílias das vítimas.
Além de terapia, muitos recorrem a medicamentos. Depois do desastre, e com a pandemia da Covid-19, o consumo de ansiolíticos e antidepressivos aumentou em 70%, e o de Rivotril, em 156%. “Tragédias causam adoecimento derivado da perda de projeto de vida”, afirma José Geraldo, farmacêutico e integrante do MAB.
Potencializando a fragilidade emocional, a ameaça concreta de contaminação pelos rejeitos de minério. “O Rio Paraopeba está comprovadamente contaminado. A lama proveniente de mineração é rica em até 12 metais pesados, cada um com efeito diferente na saúde humana. Os mais comuns, câncer linfático e de pulmão. Esse material está às margens do rio. A lama seca, vira poeira fina, é inalada. Em Mariana, estudos de avaliação de risco à saúde humana classificaram perigo urgente à saúde pública, ou seja: ou afasta a lama, ou afasta as pessoas. Isso pode se repetir em Brumadinho, por bioacumulação, mas a Vale nega esse risco”, alerta José Geraldo.
Promessas de cura
Com pequenas variações, mais retóricas do que práticas, as candidaturas convergem para as mesmas propostas no que se refere à saúde pública.
Contratar, temporariamente ou por concurso, mais profissionais capacitados tanto para o atendimento no CAPS quanto para a atenção primária, com melhores salários, pagos com o corte do que adversários do atual prefeito definem como excesso de cargos políticos (350, segundo o candidato do PRTB, Cláudio Teixeira), que oneram a o orçamento da prefeitura. “O gasto de Brumadinho com pessoal é de R$ 6 milhões por mês, sendo R$ 3,5 milhões para concursados e R$ 2,5 milhões para comissionados”, afirma o Professor Márcio Guru, do PTB.
Nenen da Asa rebate as acusações: “O prefeito é que deve saber quantos funcionários deve ter. A saúde está com boa aprovação, uma das melhores do estado. Mesmo assim, vou contratar mais profissionais e inaugurar o Hospital Regional.”
No que se refere à saúde do município e de seu futuro, são unânimes no diagnóstico: Brumadinho não pode mais ser tão dependente da Vale, hoje responsável por quase 60% da arrecadação da cidade. Dentro de 15, 20 anos, a exploração de commodities chegará ao fim, então é preciso investir desde já na atração de empresas de outros segmentos, tais como turismo, ecoturismo, agricultura familiar (que já responde pela segunda maior arrecadação da cidade) e tecnologia.
Mas, voltando ao segundo parágrafo desta reportagem, o primeiro desafio se impõe: convencer a população a mudar de ideia e ir votar. A maioria se queixa que quando mais precisou dos políticos, nenhum foi até elas, que precisaram ir até eles. Também se queixa que foram poucos dos seis candidatos a prefeito que, pouquíssimas vezes, foram aos atos que, todo dia 25, as famílias promovem em memória de suas vítimas.